E disse-lhe um da multidão: Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança. Mas ele lhe disse: Homem, quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós? E disse-lhes: Acautelai-vos e guardai-vos da avareza; porque a vida de qualquer não consiste na abundância do que possui. E disse aos seus discípulos: Portanto vos digo: Não estejais apreensivos pela vossa vida, sobre o que comereis, nem pelo corpo, sobre o que vestireis. Mais é a vida do que o sustento, e o corpo mais do que as vestes. Considerai os corvos, que nem semeiam, nem segam, nem têm despensa nem celeiro, e Deus os alimenta; quanto mais valeis vós do que as aves? E qual de vós, sendo solícito, pode acrescentar um côvado à sua estatura? Pois, se nem ainda podeis as coisas mínimas, por que estais ansiosos pelas outras? Considerai os lírios, como eles crescem; não trabalham, nem fiam; e digo-vos que nem ainda Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. E, se Deus assim veste a erva que hoje está no campo e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Não pergunteis, pois, que haveis de comer, ou que haveis de beber, e não andeis inquietos. Porque as nações do mundo buscam todas essas coisas; mas vosso Pai sabe que precisais delas. Buscai antes o reino de Deus, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.
“Vamos de Uma Vez em Busca do Verbo, Busquemos Aquele Descanso”
Não se glorie o sábio de seu saber, não se glorie o rico em sua riqueza, não se glorie o soldado de seu valor, ainda que tivessem escalado o cume do saber, da riqueza ou do valor. Vou acrescentar à lista novos paralelismos: Nem se glorie o famoso e célebre em sua glória; nem o que está são, de sua saúde; nem o elegante, de sua formosa presença; nem o jovem, de sua juventude; em uma palavra: que nenhum soberbo ou vaidoso se glorie em nenhuma daquelas coisas que celebram os mortais. Em todo caso, aquele que se glorie que se glorie somente nisto: em conhecer e buscar a Deus, em compadecer-se da sorte dos miseráveis e em fazer reservas de bem para a vida futura.
Todo o resto são coisas inconsistentes e frágeis e, como no jogo do xadrez, passam de uns aos outros, mudando de campo; e nada é tão próprio daquele que o possui que não acabe se esvaindo com o passar do tempo ou há de transmitir-se com dor aos herdeiros. Aquelas, porém, são realidades seguras e estáveis, que nunca nos deixam nem se dissipam, nem ficam frustradas as esperanças daqueles que depositaram nelas sua confiança.
A meu parecer, esta é, também, a causa de que os homens não tenham nesta vida nenhum bem estável e duradouro. E isto – como tudo o demais – assim o dispôs sabiamente a Palavra Criadora e aquela Sabedoria que supera todo entendimento, para que nos sintamos defraudados pelas coisas que estão debaixo de nossa observação, ao ver que estão sempre mudando em um ou outro sentido, ora estão em alta ora em baixa, padecendo contínuos reveses e, já antes de tê-las na mão, te escorregam e te escapam.
Comprovando, portanto, sua instabilidade e variabilidade, esforcemo-nos por atracar ao porto da vida futura. O que não faríamos nós de ser constante nossa prosperidade se, inconsistente e frágil como é, até tal ponto nos encontramos como subjugados por sutis cadeias e reduzidos a esta servidão por seus prazeres enganosos, que nos encontramos incapacitados para pensar que possa haver algo melhor e mais excelente das realidades presentes, e isso apesar de escutar e estar firmemente persuadidos de que fomos criados à imagem de Deus, imagem que está acima e nos atrai para si?
Aquele que seja sábio, que recolha estes fatos. Quem deixará passar as coisas transitórias? Quem prestará atenção às coisas estáveis? Quem considerará como efêmeras as coisas presentes? Feliz o homem que, dividindo e demarcando estas coisas com a espada da Palavra que separa o melhor do pior, prepara as elevações de seu coração, como em certo lugar afirma o Profeta Davi, e, fugindo com todas as suas energias deste vale de lágrimas, busca os bens do alto, e, crucificado ao mundo juntamente com Cristo, com Cristo ressuscita, juntamente com Cristo ascende, herdeiro de uma vida que já não é nem decrépita nem falaz: onde já não existe serpente que morde junto ao caminho nem que espreita o calcanhar, como pode se comprovar observando sua cabeça.
Considerando tudo isso, também o bem-aventurado Miqueias diz atacando aos que se arrastam por terra e têm do bem somente o ideal: Aproximai-vos dos montes eternos: pois, adiante, marchai-vos!, que não é lugar de repouso. São mais ou menos as mesmas palavras, com as quais nos anima nosso Senhor e Salvador, dizendo: Levantai-vos, vamos daqui. Jesus disse isso não somente aos que naquela ocasião tinha como discípulos, os convidando a sair unicamente daquele lugar – como talvez alguém possa pensar – mas, tratando de afastar sempre e a todos os seus discípulos da terra e das realidades terrenas, para elevá-los ao céu e às realidades celestiais.
Vamos, portanto, de uma vez em busca do Verbo, busquemos aquele descanso, rejeitemos a riqueza e abundância desta vida. Aproveitemo-nos unicamente daquilo que de bom há nelas, a saber: redimamos nossas almas à base de esmolas, demos aos pobres nossos bens, para enriquecer-nos com aqueles do céu.
São Gregório Nazianzeno, o Teólogo (séc. IV)
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